segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Por uma educação filosófica: um releitura de Sócrates e da atividade filosófica.

Desde o seu surgimento, a filosofia sempre esteve preocupada com a educação e os processos pedagógicos que envolvem essa. Sócrates foi o precursor na defesa de uma educação e uma atividade filosófica livre e autônoma. A atividade socrática nada mais era do que induzir (epagogé) o interlocutor a revisitar suas concepções e teses admitidas a fim de analisá-las a partir de um viés crítico e a procurar as respostas para as questões mais cruciais da vida de maneira livre e autônoma. Aquilo que aqui chamamos de atividade socrática só era possível através do diálogo, ponto fundamental do método de Sócrates. Todo o processo consistia em: 1) um convite ao diálogo e ao processo investigativo a fim de obter respostas ou confirmar as teses assumidas; 2) questionamentos dos mais variados e pautados por uma crítica profunda e ferramentas dialógicas; 3) rejeição das teses iniciais a partir da refutação ou conclusão do diálogo com uma aporia.
Para Sócrates, o conhecimento era assumido sempre como processual e, portanto, inacabado. Sócrates talvez tenha sido a representação histórica mais próxima da palavra “filósofo”. O apreço pelo conhecimento não se dava em separado do reconhecimento de que este é sempre resultado de um processo investigativo e que jamais se coloca como acabado, fechado hermeticamente. Se pudermos usar o termo sem incorrer em anacronismo, e isso é possível, a epistemologia socrática é crítica e radical. Crítica, pois questiona valores, ideia e atitudes, quaisquer que fossem essas. Radical, pois busca ir à raiz das questões e dos problemas pelo exercício autônomo da razão. A famosa frase, que por vezes é confundida com um teor de autoajuda ou mesmo como uma frase confusa, “só sei que nada sei”, é, na realidade, a expressão máxima da epistemologia e do método socrático. Reconhecer a ignorância é reconhecer o apreço pelo conhecimento enquanto processo e enquanto inacabado. Reconhecer a potencialidade e a possibilidade epistemológica que se coloca diante do humano e de sua capacidade raciocinativa é reconhecer sua própria natureza. Sendo assim, Sócrates não exigia nada mais que apenas uma abertura para o diálogo e para o pensamento.  Estamos falando aqui de um modelo de educação completamente diferente do nosso modelo atual, um modelo que foge ao encarceramento tanto físico quanto espiritual do interlocutor (entendendo-se aqui “espiritual” no sentido hegeliano, de produção da racionalidade humana). O legado de Sócrates é seu método de fazer filosofia. Muito mais do que textos, Sócrates deixou para depois de si a ideia de que a atividade filosófica está vinculada a uma postura. Uma postura de abertura à investigação, à crítica, ao saber, à racionalidade. Pensar um modelo de educação baseado nesses princípios é pensar a possibilidade de uma educação completamente diferente e voltada não para a mera reprodução de pensamento ou para o condicionamento à racionalidade tecnológica. Pensar uma educação com princípios éticos e políticos que visem a autonomia tanto do professor quanto do aluno é tarefa da filosofia.
A filosofia da educação é fundamental para se pensar e repensar os valores éticos que norteiam nosso modelo de educação e suas implicações políticas. Como dá a entender o documento da Unesco de 16 de novembro de 2018, ela não é suficiente, mas é necessária no processo formador das pessoas. Nesse sentido, não se pode negar a filosofia e o filosofar como elementos formadores do ser humano.
Estamos assim defendendo que a educação como um todo deve ser pautada por princípios filosóficos capazes de permitir a formação humana na sua integralidade e a partir de uma consciência humanística. Com o auxílio da filosofia, é possível pensar uma educação que desenvolva a subjetividade dos educandos em todos os seus níveis: inteligência; consciência ética; consciência estética; consciência política; consciência social. Como diria Kant: “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”. Sendo assim, a filosofia é uma necessidade para a formação, pois através dela as pessoas podem produzir de maneira reflexiva, crítica, metódica, profunda e abrangente algum significado, algum sentido para sua existência e para a realidade da qual fazem parte.
É interessante observar que a mesma observação pode ser feita quando a discussão se coloca dentro dos limites do atual modelo de educação e do cenário ético político atual. As grandes referências de uma época são dadas por uma filosofia que se tornou a ideologia dominante. Fazendo uma releitura de Marx e Engels, o modelo de educação de uma determinada época, os valores éticos e políticos que norteiam esse modelo são os valores de uma classe dominante, de uma ideologia dominante. Compreender essa ideologia e pensa-la criticamente é fazer filosofia também.
A defesa de uma educação pautada em valores filosóficos tais como a atividade crítica, raciocinativa, reflexiva é fundamental para a constituição do próprio ser humano. A defesa de uma inutilidade da filosofia responde aos interesses de particulares que temem o pensamento crítico e reflexivo. Já a defesa de uma iniciação filosófica seria pautada pela defesa de uma educação emancipadora, libertadora, crítica e reflexiva. Pautada em valores éticos, humanísticos e com forte impacto na política.
Óbvio que quando defendemos aqui o papel da filosofia na educação não estamos dizendo que ela seja suficiente para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, mas é necessária e fundamental para o processo de formação do ser humano. A filosofia é assim entendida como instrumento de formação da consciência humana. Existe, então, uma relação profunda entre a formação humana e o ato de filosofar. Quando nos referimos aqui a esse ato de filosofar, retomamos o sentido histórico da própria palavra “filosofia” e suas características, e é em Sócrates que encontramos suporte para a defesa de uma relação profunda entre formação humana e atividade filosófica. A educação socrática exige do educador uma perspectiva do não lugar: “ajudar a ver sem mostrar-se; expor-se se escondendo; ensinar a dizer uma palavra que não se deixa ler, aparecer onde já não se está mais ou já não se é mais que a forma de algum outro” (Kohan, 2009, p.14), protagonizando o educando como sujeito do próprio conhecimento. Ademais, educar é um ato de amor, pelos encontros que propicia. Ao mesmo tempo, é um ato violento, pela heterogeneidade, pela diferença que gera nesse espaço de encontro e pelas rupturas que possibilita. Aprender é encontrar-se com o outro, em si mesmo. Por isso, o professor que ensina com vistas a um modelo de imitação nada ensina. Não só não ensina; atrapalha a aprendizagem, pois não há aprendizagem quando há reprodução de conteúdo. Isso porque a questão não é aprender coisa externa, um saber dado previamente, nem sequer “construir” um conhecimento (Kohan, 2009, p.34-35). Há, para o professor, diante da especificidade filosófica, algo que jamais pode ser técnico, mecânico ou que necessite habilidade. Por isso, a dimensão que sustenta o pensar como experiência filosófica é algo que “sai transformando, que não pode ser transferido ou universalizado” (Kohan 2003, p. 40), e nele, há algo de controverso, múltiplo, que não se fecha, mas apenas situa-o no plano das condições de possibilidades que permitem descobrir suas potencialidades transformadoras. As implicações de um modelo filosófico no campo ético e político são gigantescas. Um ensino voltado para a autonomia, emancipação e tomada de consciência pode gerar rupturas das mais variadas com o status quo. Estamos falando de uma educação pautada por princípios filosóficos e defendemos que alguns desses princípios são muito bem descritos a partir da atividade filosófica defendida por Sócrates.  
Como Severino bem aponta (2006, p.621), na cultura ocidental, a educação sempre foi vista como processo de formação humana. Para o autor, a formação humana pode ser entendida como um desenvolver-se, um dar-se um ser, que implica em um processo autônomo (até certo ponto). Os humanos seriam, ao mesmo tempo, autônomos e dependentes em relação ao meio natural e cultural no qual existem. A autonomia está circunscrita nos limites da natureza e das relações sociais, produzidas pelo próprio homem. A formação humana só pode se dar dentro das relações que os seres humanos estabelecem uns com os outros. Mas dado nosso modelo atual de sociedade, em que sentido podemos falar de formação humana e quais as implicações da educação nos campos ético e político nesse modelo de sociedade? Estamos falando de uma educação que realmente visa a formação de consciência humanística?
Contrário ao que possa parecer, o modelo de educação predominante na sociedade contemporânea preza, acima de tudo, pela racionalidade tecnológica. Estamos falando de uma educação baseada naquilo que Adorno e Horkheimer chamariam de razão instrumental, em oposição a uma razão crítica. Esse modelo de educação visa a satisfação dos anseios mercadológicos do capitalismo avançado e uma mão de obra acrítica. Não é objetivo da educação atual a criação de pensadores ou críticos. Por isso as implicações de uma educação filosófica no campo da ética e da política seriam gigantescas.
A construção renovadora da humanidade exige a reconstrução de suas próprias significações. Por isso a necessidade de uma educação filosófica capaz de refletir sobre essas significações desde cedo. A iniciação filosófica deve-se dar desde cedo na educação, desde a infância. Como bem diz Lipman (1990, p. 13), o valor educativo da filosofia deve estar à disposição das crianças e jovens o mais cedo possível.
Consideremos a curiosidade infantil. A criança sempre se vê espantada com o mundo e ávida por questionar o que acontece ao seu redor. O “por quê” da criança se diferencia em muito do “por quê” do adulto, já viciado. É um “por quê” originário e com vistas unicamente ao desvelamento, um verdadeiro “querer saber”. É a indagação filosófica, o espírito investigativo, no seu estado mais puro. Por mais que seja impossível um retorno a esse sentido originário, é necessária uma luta por uma educação que se aproxime ao máximo do sentido filosófico originário, desse espanto com o mundo e com o conhecimento. Não pode haver uma educação emancipadora sem a participação, cultivo e exercício da filosofia em todos os momentos da formação. Ao contribuir de maneira profunda para o desenvolvimento do espírito problematizador do educando, a filosofia está contribuindo para uma experiência ética e política consciente por parte dos educandos. Por isso defendemos a inseparabilidade da educação emancipadora da filosofia. A educação não filosófica é aquela que visa o controle e a submissão dos educandos. A parte irônica desse cenário é que tal controle só é possível a partir de uma visão filosófica da realidade por parte dos dominadores. Ou seja, para se oprimir, usa-se filosofia. Para se libertar, usa-se filosofia. A diferença está no uso da filosofia como instrumento para uma educação emancipadora, permitindo uma consciência humanística por parte dos educandos uma participação política na construção da sociedade

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