Imaginem um escritório (um cômodo que você usa pra estudar), com todos os seus objetos dispostos da maneira que você sempre os dispõe. A mesa do lado da janela pra não bater o sol direto em você. As estantes com os livros logo atrás. Na sua mesa de estudos estão alguns livros, lápis, canetas, objetos dos mais variados. Ao mesmo tempo que tudo está em certa desorganização, essa desorganização é por você reconhecida automaticamente. Se a caixa de clips fica do lado direito, é ali que você olha quando procura por ela. Se os livros que usa com mais frequência ficam ao lado da mesa sobre uma cadeira improvisada, é ali que você olha quando procura por eles. Existe uma certa ordem na sua bagunça, existe o reconhecimento de certa ordem dentro do caos que é aquele quarto de estudos. Esse reconhecimento se dá pelo costume. O costume de colocar os livros na cadeira improvisada, o costume de colocar os clips do lado direito da mesa. A posição das coisas, quando se cria o hábito da repetição, gera certo conforto e comodismo. As ações se tornam mais mecânicas, pois isso facilita e agiliza ainda mais o processo de decisão. Não tenho que procurar, não tenho que investigar. Investigar cansa, procurar cansa. É mais fácil encontrar as coisas sempre do mesmo jeito que estiveram do que mudar tudo de lugar. Mais complicado ainda é quando alguém muda essas coisas de lugar sem a minha autorização. Agora imaginem que alguém entre nesse quarto e simplesmente arrume toda a bagunça. Aquela caixa de clips que estava do lado direito agora está do lado esquerdo da mesa. Você desesperado olha uma, duas, três vezes para a mesma posição na mesa, não encontra nada. Levanta cadernos, livros que ali estão, pois você sabe que a caixa de clips “só pode” ficar ali, não tem outro lugar pra ela. Ali é o lugar natural daquele objeto. Não faz o mínimo sentido ela não estar mais ali, uma vez que você mesmo não alterou seu lugar. Na ânsia de encontrar o objeto no lugar que você considerava natural, você chega a abrir o caderno (numa atitude completamente irracional, mas de desespero) procurando um objeto que não poderia ser escondido dentro de um caderno. E o objeto que agora não está mais em seu “lugar natural" está a um movimento de distância. Uma simples olhada para o lado seria suficiente para enxergar a caixa de clips que você procura, irracionalmente, dentro de um caderno. Nesse momento fica nítido que o comodismo gerado pelas coisas dispostas em seu lugar pelo hábito e pela aceitação geraram em você uma cegueira sem precedentes. Você chega a passar o olho várias vezes pela caixa, mas não a enxerga. Você não consegue enxergar um objeto que está do seu lado. Um objeto que sempre teve aquelas características, mas que você só o enxergava pela posição que lhe era dada de acordo com o costume e o hábito produzido ao longo do tempo. Você nunca enxergou de fato a caixa de clips, mas somente acreditava que algo deveria estar numa posição que não poderia ser alterada. A cegueira te atinge a tal ponto que uma simples mudança de posição, sem alterar as características reais do objeto, faz com que você não o enxergue mais. A ação mecânica e cotidiana, o hábito da repetição, a imposição de valores que aceito e simplesmente reproduzo constantemente, o medo e a preguiça de pensar por mim mesmo e o medo do diferente, da investigação, me fazem uma pessoa mecânica e que simplesmente responde a estímulos, sejam físicos, sejam morais. O indivíduo que não enxerga a caixa que mudou de posição não o faz porque se acostumou à posição das coisas como era de costume. Não há espaço para se pensar uma posição diferente daquela gerada pelo hábito. A verdade passa a ser condicionada pelo modo como as coisas lhe foram impostas ao longo do tempo. Não há espaço para mudança, mesmo que essa ocorra contra sua vontade. A cegueira não o faz enxergar a mudança de posição da caixa. É assim que se dá com certos valores morais que consideramos tradições. Na situação do comodismo moral, da aceitação irrefletida de determinados valores morais, a pessoa não consegue enxergar uma simples mudança em sociedade, e passa a procurar o valor moral onde ele não está. É essa postura irrefletida, baseada na tradição e no hábito moral, que leva alguns a rechaçarem um beijo entre duas pessoas que se amam. É a prisão a certos hábitos e certos valores morais ultrapassados, condicionados pelo tempo e pela repetição, que leva certas pessoas a condenarem um ato de amor acreditando estarem com a razão, quando na realidade assim como o cego que não enxerga a caixa de clips do lado da mesa estão completamente cegos e não enxergam mudanças necessárias. Aquilo sempre foi amor, mas antes o amor só podia ser visto numa mesma posição, qualquer coisa diferente seria considerada não natural. Essa cegueira irrefletida e irracional leva as pessoas a reverberarem todo tipo de discurso preconceituoso e com forte caráter religioso. A crença opera de maneira a retirar toda a capacidade de reflexão e levar o indivíduo a ser guiado por posições que ele mesmo não entende, não criou, mas simplesmente aceita como verdadeiras. A crença de que a caixa de clips deveria estar no mesmo lugar de sempre faz com que o indivíduo a procure até onde ela jamais poderia estar, dentro de um caderno. Carece, ao cego moral, autonomia, dúvidas e a curiosidade característica de quem busca o conhecimento, sobra-lhe fé cega, arrogância e certeza. O cego moral é aquele incapaz de perceber que no fundo nunca conheceu a caixa de clips, mas somente a disposição das coisas como o tempo lhe fez aceitar. O cego moral vai lutar até o fim, contra tudo e contra todos, pra defender que a caixa deveria sempre ficar no mesmo lugar. A sociedade, no final das contas, é essa máquina movida pela contradição entre cegos morais, que tentam impor a todo e qualquer custo suas certezas, e aqueles que adoram mudar a caixa de lugar. Só espero existir mais pessoas pra mudarem as caixas de lugar, do que cegos guiando a sociedade.
Thiago Oliveira