segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Racionalidade tecnológica e educação crítica: uma oposição.



A educação contemporânea se alicerça na lógica capitalista e, consequentemente, na racionalidade tecnológica assumindo o estatuto da centralidade. Segundo Mészáros, uma das funções principais da educação formal no sistema capitalista é a de produzir entre os educandos uma conformidade ou consenso no mais alto grau possível, e tudo isso dentro e por meio dos próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. (MÉSZÁROS, 2009).  Nesse modelo de educação, a ideia é assegurar que cada indivíduo adote como suas as próprias metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. É absurdo pensar educação hoje sem integrar essa ao modo de produção na qual ela se insere, mais absurdo ainda seria pensar uma educação institucionalizada que se proponha de maneira contrária ao que o sistema impõe. É nesse sentido que podemos dizer como dissemos no início do texto que todo o alicerce da educação contemporânea está assentado na lógica capitalista e na sua dinâmica.
Dentro desse cenário, como pensar a relação entre educação e tecnologia sob um ponto de vista crítico? Como discutir categorias tão fundamentais ao pensamento humano como as categorias de dominação, democratização e cultura em uma sociedade completamente dominada pela racionalidade tecnológica? É possível falar de uma educação para a emancipação considerando o indivíduo no tempo da sociedade tecnológica?
Diferente do que faz parecer o texto dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), que afirma claramente que o desenvolvimento tecnológico resultou diretamente no bem da formação e humanização do indivíduo, a realidade nos mostra outra coisa. Em resumo, o texto trata, dentre outras coisas, da relação entre as ciências humanas e a tecnologia. A proposta é oferecer um modelo de projeto pedagógico renovado em comparação com os antigos modelos utilizados. Projetos que proporiam uma maior aproximação entre as atividades pedagógicas e a tecnologia. Ao abordar o tema, o texto começa retratando o fato de que quem vive o cotidiano escolar já percebe que os velhos paradigmas educacionais, com seus currículos estritamente disciplinares, revelam-se cada vez menos adequados, com reflexos no aprendizado e no próprio convívio. Segundo o texto, os números apontam a necessidade de uma revisão da escola que era, em suma, preparatória para o ensino superior, o que não ocorre mais. A ideia é que ao discutir novas tecnologias na escola, o aluno não seja exclusivamente preparado para o ensino superior, mas também tenha uma preparação para a vida profissional e o mundo do trabalho.
Além disso, o texto defende que as disciplinas devem ser capazes de promover um conjunto de competências como complemento à formação pedagógica dos estudantes. Essas competências seriam: 1) comunicar e representar; 2) investigar e compreender; 3) contextualizar social ou historicamente os conhecimentos. A prática docente estaria voltada, então, para o desenvolvimento dessas competências e habilidades, bem como na realização de atividades escolares significativas e contextualizadas ao momento histórico e cenário tecnológico.
O que há na realidade é uma glamourização e uma fetichização das tecnologias no universo educacional. A reforma educacional nos moldes mercadológicos associa a formação do indivíduo aos critérios de competência, tal como defende o texto dos PCN, com vistas ao domínio de novas tecnologias de informação e comunicação, mas que no fundo esconde um processo de embrutecimento na formação dos estudantes e um condicionamento para o universo mercadológico do trabalho, que exige cada vez mais o conhecimento de tecnologias ao mesmo tempo que exige conformismo com a realidade. Que fique claro, nosso texto não nega a necessidade de desenvolvimento de competências nem de novas tecnologias que possam vir a favorecer o processo formativo, mas a crítica incide sobre o alicerce dessas ideias, que está totalmente fundado na racionalidade tecnológica típica do capitalismo avançado.  
Ademais, o texto transmite uma ideia um tanto quanto falsa de que em conjunto com o progresso tecnológico se deu, também, o progresso humanístico. Essa contradição histórica já havia sido apontada por Marx quando este, juntamente com Engels, anuncia que se de um lado temos o avanço técnico, como aumento do poder do homem sobre a natureza, como enriquecimento e como progresso, por outro temos a escravidão (servilismo) da classe operária cada vez mais empobrecida e alienada (MARX, 2010).
Ao pensarmos criticamente a relação entre a educação contemporânea e aquilo que se acostumou chamar de novas TCIs (tecnologias de informação), lembramos de Adorno e a ideia da pseudoformação. A ideia de que a submissão completa da educação aos instrumentos tecnológicos atuais poderia trazer um ganho maior ao educando pode ser uma ideia falaciosa e tendenciosa. Disfarçada de democratização da cultura, a defesa intransigente das tecnologias pode ser, na verdade, um instrumento para a manutenção da ordem social vigente.
Quando se fala de educação em tempos de sociedade tecnológica deve-se tomar cuidado para não cair em um maniqueísmo ou em um negacionismo. Não se está criticando a tecnologia em si, mas o uso que se faz dela, o modo como ela é produzida e controlada e o modo como se pretende aplica-la na educação para reproduzir um conformismo à ordem social vigente.
Antes de mais nada, é preciso entender que a incorporação de tecnologias na educação segue a passos cada vez mais largos e já se tornou algo muito comum. De acordo com o que dissemos acima, não é a presença ou a tecnologia em si que deve ser vista com olhos críticos, mas o uso que se faz dela. Cabe diferenciar também o uso inevitável da tecnologia na educação, quando falamos do uso de multimídia na sala de aula e até em pautas de pesquisas acadêmicas, daquele uso enviesado que reproduz o modelo vigente.
As tecnologias estão relacionadas a uma determinada cultura, contextualizada em um momento histórico, social, político e econômico. Não se trata apenas de equipamentos ou instrumentos físicos, mas sim de uma organização do processo produtivo. Por isso que temos que ter bem claro que não se trata de falar e defender o uso de instrumentos de trabalho em sala de aula, coisa que acontece como que automaticamente durante os processos de mudança nos modelos de ensino. Discutir tecnologia e educação de maneira crítica é discutir como aquela pode se tornar um instrumento para a manutenção da ordem vigente se utilizando da educação. Como diria Marcuse (1999, p73), “...a tecnologia é uma forma de organizar e perpetrar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação.”
O uso da tecnologia se tornou mecanismo de dominação do homem sobre a natureza e sobre ele mesmo. Junto com o esclarecimento e o domínio das mais variadas técnicas na contemporaneidade, veio a eliminação da própria condição de humano e sua autoconsciência. Quando o texto dos PCNs defende a adesão por completo ao discurso da racionalidade tecnológica, eles condicionam a formação de professores e toda a educação também de acordo com essa racionalidade tecnológica. Na ânsia de estar inovando no processo de formação, o texto defende de maneira acrítica a utilização de novas tecnologias, incorporadas ao processo formativo pela educação, mas esquecem que isso não torna o processo pedagógico imune ao ciclo vicioso de alienação do indivíduo que a racionalidade tecnológica pode gerar. A formação pela educação fundamentada no domínio da técnica e da tecnologia segue os ditames do capital, caracterizando uma pseudoformação, ou aquilo que Adorno chama de deformação da consciência. Essa pseudoformação reforça a alienação e cria uma casta de estudantes totalmente voltados única e exclusivamente para a satisfação da lógica mercadológica.
O projeto cultural no contexto da sociedade tecnológica é perpetuar o comportamento padronizado instaurado pela sociedade burguesa. O desafio de uma educação que pense criticamente o uso das tecnologias e vise a emancipação dos indivíduos é o de romper com a consciência coisificada, propiciada pelas relações unilaterais entre tecnologia e usuário. Essa consciência coisificada é um estado de indiferença, de efemeridade e absoluta alienação.
Essa leitura do caráter alienante das tecnologias não pode ser tão radical a ponto de negar por completo o seu uso. É possível pensar um uso crítico desse aparato tecnológico a fim de romper com a consciência coisificada, uma vez que estamos todos presos à sociedade tecnológica. Basta fazer da própria sala de aula um espaço de crítica a esse modelo de sociedade e de reflexão sobre os usos da tecnologia na formação do docente e na condução dos processos pedagógicos. É preciso repensar as políticas públicas que, por inúmeras vezes, promovem o empobrecimento da experiência crítica na trajetória dos professores por uma formação que mais contempla a instrumentalização e a especialização com caráter reducionista e fragmentado, reproduzindo a racionalidade tecnológica. Uma saída é a resistência a esse aligeiramento e à instrumentação através de uma práxis educativa. Essa práxis oportunizaria experiências entre os indivíduos e a cultura.
As tecnologias por si só são incapazes de promover a formação pela educação com vistas à emancipação e ao livre pensar. É necessária uma formação docente política e cultural para se contrapor às condições de superficialidade e fragmentação do conhecimento. A racionalidade tecnológica controla a possibilidade de experiências e faz com que a ordem social se sobreponha sobre a experiência formativa pela educação. A práxis educativa deve romper com essa lógica e garantir ao processo formativo autonomia e capacidade crítica, inclusive no uso dos instrumentos e da tecnologia em favor dessa formação crítica. A educação e formação burguesa, determinada pela racionalidade tecnológica e que se legitima no mercado e no mundo administrado (tal como queria Taylor), resulta em processos de massificação e alienação da consciência. A tecnologia, nesse universo, deixa de ser instrumento de emancipação e passa a ser instrumento de dominação irrestrita e inconsequente da natureza e do próprio homem. Essa é uma crítica, como já dissemos, não ao uso das tecnologias em si, mas uma crítica às estruturas da sociedade tecnológica baseada na razão instrumental e na racionalidade tecnológica.
Contrária à essa dinâmica de formação alienante, uma práxis educativa pode e deve ser resultante de um permanente exercício intelectual crítico. Portanto, é preciso opor-se à barbárie que se cristalizou nas escolas, completamente dominadas pelo modo tecnicista de pensamento. O mesmo se dá nas universidades quando se trata da formação docente, completamente tomada pela ideia de mera transmissão em larga escala e em maior quantidade possível de informação em detrimento do conhecimento.
A função das escolas e universidades deve ser, dentre outras coisas, a de conscientização, por isso é fundamental que as experiências formativas constituam uma possibilidade de emancipação dos professores que serão futuros agentes de emancipação nessas instituições. Romper com a racionalidade tecnológica e com a coisificação da consciência é fundamental nesse sentido. Que fique claro mais uma vez, a proposta aqui é uma crítica ao tecnicismo, à racionalidade tecnológica, à lógica mercadológica que instrumentaliza a formação e o conhecimento, em nenhum momento a crítica se volta para o uso de tecnologias como instrumento para o desenvolvimento humanístico e científico. A tecnologia não pode ser vista como fim, mas meio. A escola atual, aliada ao caráter tecnológico da sociedade, visa produzir máquinas a serem integradas ao sistema e promoverem ainda mais a radicalização da técnica nos processos de formação e nas relações sociais. É no mercado que esse modelo se legitima e é para ele que essa escola trabalha. Não há sentido em falar de escola se esta não for capaz de criar consciência crítica e romper com essa racionalidade. Do contrário, não estamos falando de escola, mas de controle e reprodução. Uma indústria que renova, constantemente, as engrenagens do status quo.
Se não forem bem utilizadas e concebidas de maneira crítica, as tecnologias podem se tornar instrumento de controle do tempo e do espaço em detrimento da dimensão humana por parte daqueles que dominam a ordem social vigente. É notório que a tecnologia poderia libertar a sociedade da miséria e da exploração, e isso está para além de seu uso na sociedade do capital, um uso mercadológico e fetichizado. Ademais, as tecnologias deveriam ser meios e não fins. Na sociedade contemporânea a educação é banalizada e reduzida à mera instrumentalização e uso das tecnologias. Enquanto fábrica de máquinas, a escola simplesmente reproduz a lógica do mercado formando indivíduos acríticos, mas preparados para se integrarem como engrenagem ao sistema. Alicerçar a educação nos moldes da racionalidade tecnológica é correr o risco de legitimar e manter a realidade tal como se apresenta e reproduzir continuamente seus valores. Qualquer possibilidade de mudança ou mesmo de crítica fica completamente reduzida. Ou se pensa criticamente o uso das tecnologias na educação, ou esse uso será sempre aquele enviesado e proposto pelos grupos que dominam a tecnologia. No final, ela será instrumento para a manutenção da dominação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
______________. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
_____________.  Pedagogia do oprimido. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980
MARX, K. ENGELS, F. Manifesto comunista. Org. de Osvaldo Coggiola. 4a reimpressão. São Paulo: Boitempo, 2005.
____________________. Manuscritos econômico -filosóficos. Trad. Jesus Raniere. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, I. Educação para Além do Capital. 2ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2008.













domingo, 8 de setembro de 2019

A caixa de clips e o cego moral


Imaginem um escritório (um cômodo que você usa pra estudar), com todos os seus objetos dispostos da maneira que você sempre os dispõe. A mesa do lado da janela pra não bater o sol direto em você. As estantes com os livros logo atrás. Na sua mesa de estudos estão alguns livros, lápis, canetas, objetos dos mais variados. Ao mesmo tempo que tudo está em certa desorganização, essa desorganização é por você reconhecida automaticamente. Se a caixa de clips fica do lado direito, é ali que você olha quando procura por ela. Se os livros que usa com mais frequência ficam ao lado da mesa sobre uma cadeira improvisada, é ali que você olha quando procura por eles. Existe uma certa ordem na sua bagunça, existe o reconhecimento de certa ordem dentro do caos que é aquele quarto de estudos. Esse reconhecimento se dá pelo costume. O costume de colocar os livros na cadeira improvisada, o costume de colocar os clips do lado direito da mesa. A posição das coisas, quando se cria o hábito da repetição, gera certo conforto e comodismo. As ações se tornam mais mecânicas, pois isso facilita e agiliza ainda mais o processo de decisão. Não tenho que procurar, não tenho que investigar. Investigar cansa, procurar cansa. É mais fácil encontrar as coisas sempre do mesmo jeito que estiveram do que mudar tudo de lugar. Mais complicado ainda é quando alguém muda essas coisas de lugar sem a minha autorização. Agora imaginem que alguém entre nesse quarto e simplesmente arrume toda a bagunça. Aquela caixa de clips que estava do lado direito agora está do lado esquerdo da mesa. Você desesperado olha uma, duas, três vezes para a mesma posição na mesa, não encontra nada. Levanta cadernos, livros que ali estão, pois você sabe que a caixa de clips “só pode” ficar ali, não tem outro lugar pra ela. Ali é o lugar natural daquele objeto. Não faz o mínimo sentido ela não estar mais ali, uma vez que você mesmo não alterou seu lugar. Na ânsia de encontrar o objeto no lugar que você considerava natural, você chega a abrir o caderno (numa atitude completamente irracional, mas de desespero) procurando um objeto que não poderia ser escondido dentro de um caderno. E o objeto que agora não está mais em seu “lugar natural" está a um movimento de distância. Uma simples olhada para o lado seria suficiente para enxergar a caixa de clips que você procura, irracionalmente, dentro de um caderno. Nesse momento fica nítido que o comodismo gerado pelas coisas dispostas em seu lugar pelo hábito e pela aceitação geraram em você uma cegueira sem precedentes. Você chega a passar o olho várias vezes pela caixa, mas não a enxerga. Você não consegue enxergar um objeto que está do seu lado. Um objeto que sempre teve aquelas características, mas que você só o enxergava pela posição que lhe era dada de acordo com o costume e o hábito produzido ao longo do tempo. Você nunca enxergou de fato a caixa de clips, mas somente acreditava que algo deveria estar numa posição que não poderia ser alterada. A cegueira te atinge a tal ponto que uma simples mudança de posição, sem alterar as características reais do objeto, faz com que você não o enxergue mais. A ação mecânica e cotidiana, o hábito da repetição, a imposição de valores que aceito e simplesmente reproduzo constantemente, o medo e a preguiça de pensar por mim mesmo e o medo do diferente, da investigação, me fazem uma pessoa mecânica e que simplesmente responde a estímulos, sejam físicos, sejam morais. O indivíduo que não enxerga a caixa que mudou de posição não o faz porque se acostumou à posição das coisas como era de costume. Não há espaço para se pensar uma posição diferente daquela gerada pelo hábito. A verdade passa a ser condicionada pelo modo como as coisas lhe foram impostas ao longo do tempo. Não há espaço para mudança, mesmo que essa ocorra contra sua vontade. A cegueira não o faz enxergar a mudança de posição da caixa. É assim que se dá com certos valores morais que consideramos tradições. Na situação do comodismo moral, da aceitação irrefletida de determinados valores morais, a pessoa não consegue enxergar uma simples mudança em sociedade, e passa a procurar o valor moral onde ele não está. É essa postura irrefletida, baseada na tradição e no hábito moral, que leva alguns a rechaçarem um beijo entre duas pessoas que se amam. É a prisão a certos hábitos e certos valores morais ultrapassados, condicionados pelo tempo e pela repetição, que leva certas pessoas a condenarem um ato de amor acreditando estarem com a razão, quando na realidade assim como o cego que não enxerga a caixa de clips do lado da mesa estão completamente cegos e não enxergam mudanças necessárias. Aquilo sempre foi amor, mas antes o amor só podia ser visto numa mesma posição, qualquer coisa diferente seria considerada não natural. Essa cegueira irrefletida e irracional leva as pessoas a reverberarem todo tipo de discurso preconceituoso e com forte caráter religioso. A crença opera de maneira a retirar toda a capacidade de reflexão e levar o indivíduo a ser guiado por posições que ele mesmo não entende, não criou, mas simplesmente aceita como verdadeiras. A crença de que a caixa de clips deveria estar no mesmo lugar de sempre faz com que o indivíduo a procure até onde ela jamais poderia estar, dentro de um caderno. Carece, ao cego moral, autonomia, dúvidas e a curiosidade característica de quem busca o conhecimento, sobra-lhe fé cega, arrogância e certeza. O cego moral é aquele incapaz de perceber que no fundo nunca conheceu a caixa de clips, mas somente a disposição das coisas como o tempo lhe fez aceitar. O cego moral vai lutar até o fim, contra tudo e contra todos, pra defender que a caixa deveria sempre ficar no mesmo lugar. A sociedade, no final das contas, é essa máquina movida pela contradição entre cegos morais, que tentam impor a todo e qualquer custo suas certezas, e aqueles que adoram mudar a caixa de lugar. Só espero existir mais pessoas pra mudarem as caixas de lugar, do que cegos guiando a sociedade.


Thiago Oliveira

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Por uma educação filosófica: um releitura de Sócrates e da atividade filosófica.

Desde o seu surgimento, a filosofia sempre esteve preocupada com a educação e os processos pedagógicos que envolvem essa. Sócrates foi o precursor na defesa de uma educação e uma atividade filosófica livre e autônoma. A atividade socrática nada mais era do que induzir (epagogé) o interlocutor a revisitar suas concepções e teses admitidas a fim de analisá-las a partir de um viés crítico e a procurar as respostas para as questões mais cruciais da vida de maneira livre e autônoma. Aquilo que aqui chamamos de atividade socrática só era possível através do diálogo, ponto fundamental do método de Sócrates. Todo o processo consistia em: 1) um convite ao diálogo e ao processo investigativo a fim de obter respostas ou confirmar as teses assumidas; 2) questionamentos dos mais variados e pautados por uma crítica profunda e ferramentas dialógicas; 3) rejeição das teses iniciais a partir da refutação ou conclusão do diálogo com uma aporia.
Para Sócrates, o conhecimento era assumido sempre como processual e, portanto, inacabado. Sócrates talvez tenha sido a representação histórica mais próxima da palavra “filósofo”. O apreço pelo conhecimento não se dava em separado do reconhecimento de que este é sempre resultado de um processo investigativo e que jamais se coloca como acabado, fechado hermeticamente. Se pudermos usar o termo sem incorrer em anacronismo, e isso é possível, a epistemologia socrática é crítica e radical. Crítica, pois questiona valores, ideia e atitudes, quaisquer que fossem essas. Radical, pois busca ir à raiz das questões e dos problemas pelo exercício autônomo da razão. A famosa frase, que por vezes é confundida com um teor de autoajuda ou mesmo como uma frase confusa, “só sei que nada sei”, é, na realidade, a expressão máxima da epistemologia e do método socrático. Reconhecer a ignorância é reconhecer o apreço pelo conhecimento enquanto processo e enquanto inacabado. Reconhecer a potencialidade e a possibilidade epistemológica que se coloca diante do humano e de sua capacidade raciocinativa é reconhecer sua própria natureza. Sendo assim, Sócrates não exigia nada mais que apenas uma abertura para o diálogo e para o pensamento.  Estamos falando aqui de um modelo de educação completamente diferente do nosso modelo atual, um modelo que foge ao encarceramento tanto físico quanto espiritual do interlocutor (entendendo-se aqui “espiritual” no sentido hegeliano, de produção da racionalidade humana). O legado de Sócrates é seu método de fazer filosofia. Muito mais do que textos, Sócrates deixou para depois de si a ideia de que a atividade filosófica está vinculada a uma postura. Uma postura de abertura à investigação, à crítica, ao saber, à racionalidade. Pensar um modelo de educação baseado nesses princípios é pensar a possibilidade de uma educação completamente diferente e voltada não para a mera reprodução de pensamento ou para o condicionamento à racionalidade tecnológica. Pensar uma educação com princípios éticos e políticos que visem a autonomia tanto do professor quanto do aluno é tarefa da filosofia.
A filosofia da educação é fundamental para se pensar e repensar os valores éticos que norteiam nosso modelo de educação e suas implicações políticas. Como dá a entender o documento da Unesco de 16 de novembro de 2018, ela não é suficiente, mas é necessária no processo formador das pessoas. Nesse sentido, não se pode negar a filosofia e o filosofar como elementos formadores do ser humano.
Estamos assim defendendo que a educação como um todo deve ser pautada por princípios filosóficos capazes de permitir a formação humana na sua integralidade e a partir de uma consciência humanística. Com o auxílio da filosofia, é possível pensar uma educação que desenvolva a subjetividade dos educandos em todos os seus níveis: inteligência; consciência ética; consciência estética; consciência política; consciência social. Como diria Kant: “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”. Sendo assim, a filosofia é uma necessidade para a formação, pois através dela as pessoas podem produzir de maneira reflexiva, crítica, metódica, profunda e abrangente algum significado, algum sentido para sua existência e para a realidade da qual fazem parte.
É interessante observar que a mesma observação pode ser feita quando a discussão se coloca dentro dos limites do atual modelo de educação e do cenário ético político atual. As grandes referências de uma época são dadas por uma filosofia que se tornou a ideologia dominante. Fazendo uma releitura de Marx e Engels, o modelo de educação de uma determinada época, os valores éticos e políticos que norteiam esse modelo são os valores de uma classe dominante, de uma ideologia dominante. Compreender essa ideologia e pensa-la criticamente é fazer filosofia também.
A defesa de uma educação pautada em valores filosóficos tais como a atividade crítica, raciocinativa, reflexiva é fundamental para a constituição do próprio ser humano. A defesa de uma inutilidade da filosofia responde aos interesses de particulares que temem o pensamento crítico e reflexivo. Já a defesa de uma iniciação filosófica seria pautada pela defesa de uma educação emancipadora, libertadora, crítica e reflexiva. Pautada em valores éticos, humanísticos e com forte impacto na política.
Óbvio que quando defendemos aqui o papel da filosofia na educação não estamos dizendo que ela seja suficiente para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, mas é necessária e fundamental para o processo de formação do ser humano. A filosofia é assim entendida como instrumento de formação da consciência humana. Existe, então, uma relação profunda entre a formação humana e o ato de filosofar. Quando nos referimos aqui a esse ato de filosofar, retomamos o sentido histórico da própria palavra “filosofia” e suas características, e é em Sócrates que encontramos suporte para a defesa de uma relação profunda entre formação humana e atividade filosófica. A educação socrática exige do educador uma perspectiva do não lugar: “ajudar a ver sem mostrar-se; expor-se se escondendo; ensinar a dizer uma palavra que não se deixa ler, aparecer onde já não se está mais ou já não se é mais que a forma de algum outro” (Kohan, 2009, p.14), protagonizando o educando como sujeito do próprio conhecimento. Ademais, educar é um ato de amor, pelos encontros que propicia. Ao mesmo tempo, é um ato violento, pela heterogeneidade, pela diferença que gera nesse espaço de encontro e pelas rupturas que possibilita. Aprender é encontrar-se com o outro, em si mesmo. Por isso, o professor que ensina com vistas a um modelo de imitação nada ensina. Não só não ensina; atrapalha a aprendizagem, pois não há aprendizagem quando há reprodução de conteúdo. Isso porque a questão não é aprender coisa externa, um saber dado previamente, nem sequer “construir” um conhecimento (Kohan, 2009, p.34-35). Há, para o professor, diante da especificidade filosófica, algo que jamais pode ser técnico, mecânico ou que necessite habilidade. Por isso, a dimensão que sustenta o pensar como experiência filosófica é algo que “sai transformando, que não pode ser transferido ou universalizado” (Kohan 2003, p. 40), e nele, há algo de controverso, múltiplo, que não se fecha, mas apenas situa-o no plano das condições de possibilidades que permitem descobrir suas potencialidades transformadoras. As implicações de um modelo filosófico no campo ético e político são gigantescas. Um ensino voltado para a autonomia, emancipação e tomada de consciência pode gerar rupturas das mais variadas com o status quo. Estamos falando de uma educação pautada por princípios filosóficos e defendemos que alguns desses princípios são muito bem descritos a partir da atividade filosófica defendida por Sócrates.  
Como Severino bem aponta (2006, p.621), na cultura ocidental, a educação sempre foi vista como processo de formação humana. Para o autor, a formação humana pode ser entendida como um desenvolver-se, um dar-se um ser, que implica em um processo autônomo (até certo ponto). Os humanos seriam, ao mesmo tempo, autônomos e dependentes em relação ao meio natural e cultural no qual existem. A autonomia está circunscrita nos limites da natureza e das relações sociais, produzidas pelo próprio homem. A formação humana só pode se dar dentro das relações que os seres humanos estabelecem uns com os outros. Mas dado nosso modelo atual de sociedade, em que sentido podemos falar de formação humana e quais as implicações da educação nos campos ético e político nesse modelo de sociedade? Estamos falando de uma educação que realmente visa a formação de consciência humanística?
Contrário ao que possa parecer, o modelo de educação predominante na sociedade contemporânea preza, acima de tudo, pela racionalidade tecnológica. Estamos falando de uma educação baseada naquilo que Adorno e Horkheimer chamariam de razão instrumental, em oposição a uma razão crítica. Esse modelo de educação visa a satisfação dos anseios mercadológicos do capitalismo avançado e uma mão de obra acrítica. Não é objetivo da educação atual a criação de pensadores ou críticos. Por isso as implicações de uma educação filosófica no campo da ética e da política seriam gigantescas.
A construção renovadora da humanidade exige a reconstrução de suas próprias significações. Por isso a necessidade de uma educação filosófica capaz de refletir sobre essas significações desde cedo. A iniciação filosófica deve-se dar desde cedo na educação, desde a infância. Como bem diz Lipman (1990, p. 13), o valor educativo da filosofia deve estar à disposição das crianças e jovens o mais cedo possível.
Consideremos a curiosidade infantil. A criança sempre se vê espantada com o mundo e ávida por questionar o que acontece ao seu redor. O “por quê” da criança se diferencia em muito do “por quê” do adulto, já viciado. É um “por quê” originário e com vistas unicamente ao desvelamento, um verdadeiro “querer saber”. É a indagação filosófica, o espírito investigativo, no seu estado mais puro. Por mais que seja impossível um retorno a esse sentido originário, é necessária uma luta por uma educação que se aproxime ao máximo do sentido filosófico originário, desse espanto com o mundo e com o conhecimento. Não pode haver uma educação emancipadora sem a participação, cultivo e exercício da filosofia em todos os momentos da formação. Ao contribuir de maneira profunda para o desenvolvimento do espírito problematizador do educando, a filosofia está contribuindo para uma experiência ética e política consciente por parte dos educandos. Por isso defendemos a inseparabilidade da educação emancipadora da filosofia. A educação não filosófica é aquela que visa o controle e a submissão dos educandos. A parte irônica desse cenário é que tal controle só é possível a partir de uma visão filosófica da realidade por parte dos dominadores. Ou seja, para se oprimir, usa-se filosofia. Para se libertar, usa-se filosofia. A diferença está no uso da filosofia como instrumento para uma educação emancipadora, permitindo uma consciência humanística por parte dos educandos uma participação política na construção da sociedade