Um bom texto com informações importantíssimas para educadores e futuros educadores. O texto é sobre um documentário que mostra muito bem como a escolarização pode destruir determinadas culturas e valores. Vale a pena ler e assistir ao documentário.
Como é possível criar condições para uma educação que permita, ao mesmo tempo, uma autonomia do indivíduo sem impor valores que lhes sejam externos ou estranhos à sua cultura? É possível falar em uma educação ideal? Ora, pode não haver uma educação ideal, mas é possível falar em uma escolarização como ferramenta de colonização e homogeneização cultural, o que se configura um grave problema.
Escolarizando o mundo
Documentário disponível no YouTube com legendas em português aborda a educação escolar como ferramenta de colonização e de homogeneização cultural.
Por: Vera Rita da Costa
Publicado em 23/01/2014 | Atualizado em 23/01/2014
A chamada principal de ‘Escolarizando o mundo’ resume bem a mensagem presente em todo o documentário: “Se quisesse destruir uma cultura, por onde começaria? ...Pelas crianças.” (foto: Divulgação)
Depois de assistir ao documentário Escolarizando o mundo – o último fardo do homem branco, responda a pergunta: Você perdeu o sono? Se sim, saberemos que trabalha com educação, pois não há como assisti-lo e sair incólume dessa experiência. E mesmo para quem não trabalha diretamente na área, eis aí uma produção que dá o que pensar.
Não se trata de algo novo. Na realidade, o documentário é uma produção de 2011. A novidade é que ele se encontra disponível agora no YouTube, legendando em português, o que o tem feito circular como referência pelas redes sociais e gerar inúmeros comentários, sobretudo em grupos de professores e outros profissionais envolvidos com educação.
O filme mostra um lado perverso da educação: a possibilidade de, se mal utilizada, a escola servir à extinção das culturas e à perda da diversidade cultural
Vale conferir. O filme é uma co-produção americana e indiana. Dirigido e editado por Carol Back, aborda de forma contundente o fato de a educação escolar ter servido, ao longo dos últimos séculos, à colonização e estar servindo, atualmente, à homogeneização cultural. Em outras palavras, com o documentário se mostra um lado perverso da educação para o qual nem sempre voltamos os olhos: a possibilidade de, se mal utilizada, a escola servir à extinção das culturas e à perda da diversidade cultural.
Nem sempre a educação e a boa vontade dos educadores se prestam à emancipação e à autonomia. Aliás, esse é um dos aspectos analisados no filme que mais chamam a atenção: em todo o mundo são frequentes ações voluntárias de organizações não governamentais ou de indivíduos bem intencionados em prol da educação de populações locais. Nem sempre, no entanto, essas ações vêm acompanhadas da plena consciência do processo mais amplo em que estão inseridas e que, em geral, envolve a espoliação de territórios e a desvalorização de saberes tradicionais.
Diversidade cultural em risco
Escolarizando o mundo foi filmado, principalmente, em Ladakh, região situada no sudeste da Ásia e conhecida como ‘pequeno Tibet’, palco de disputas políticas entre Índia, Paquistão e China, em uma região do Himalaia (a parte oriental e sob controle indiano) onde a cultura budista tibetana luta por manter vivas as suas tradições e a sua língua original. É com base, portanto, no que vem acontecendo em Ladakh, mas não apenas restrito a esse local, que o filme procura tornar explícitas as premissas ocultas por trás de projetos de escolarização em andamento em várias partes do mundo. Entre elas, destaca-se a falsa ideia de que os valores e o modo de vida ocidental são superiores e absolutos, vias de acesso garantido para uma vida melhor.
Como revela o documentário, não necessariamente essas promessas são verdadeiras e, na maior parte das vezes, mostram-se fábulas irreais. Muitos jovens têm sido apartados de suas localidades e se deslocado para os grandes centros urbanos, deixando para trás suas famílias e raízes culturais. Os efeitos desse processo são muitos e danosos: vão desde a desistência da agricultura ou a sobrecarga de trabalho para mulheres e idosos, que se veem deixados para trás pelos jovens que migram, até o abandono desses mesmos jovens, que se veem desempregados ou subempregados em grandes centros urbanos, em uma situação limítrofe de recusa e crítica a sua própria cultura e de não assimilação da cultura idealizada.
Ou seja, longe de cumprir as promessas anunciadas, a disseminação dos valores e do modo de vida ocidental entre populações autóctones, promovida deliberadamente por meio da escolarização, tem levado em muitos casos à destruição das identidades locais e à homogeneização cultural humana. A troca dos modos de vida tradicionais pela adoção de uma cultura de subempregos escassos em sociedades urbanas e de consumo, cuja ênfase encontra-se apenas no sucesso material, tem, portanto, um altíssimo custo para essas populações, defende o documentário.
Em Escolarizando o mundo, as imagens são o recurso mais valioso usado pelos produtores para chamar nossa atenção para o contraste entre os modos de vida locais e o modo de vida global, proposto atualmente. Imagens lindíssimas da região da cordilheira do Himalaia (e que envolvem também cenas do modo de vida tradicional lá praticado) contrastam com as de grandes cidades, para onde os jovens migram em busca de escolarização, ascensão social e poder de consumo.
História e debate
Merecem destaque também a pesquisa histórica feita para o documentário, que revela o uso deliberado da escolarização pelos Estados Unidos e pela Inglaterra no período colonial, e a rica discussão promovida entre os convidados: Wade Davis, da National Geographic Society, Helena Norberg- Hodge, da The International Society for Ecology and Culture (ISEC), Vandana Shiva, da Navdanya – Foundation for Science, Technology and Ecology (RFSTE), Manish Jain, da Shikshantar -- The People’s Institute for Rethinking Education and Development, e Dolma Tsering, líder na Aliança das Mulheres de Ladakh.
Davis: "As culturas tradicionais são como ecossistemas, formam uma rede complexa de relações entre pessoas e o local em que vivem"
Entre os argumentos apresentados na discussão, destaca-se a intervenção do antropólogo e etnobotânico canadense Wade Davis. Ele defende que as culturas tradicionais são como ecossistemas, formam uma rede complexa de relações entre pessoas e o local em que vivem, e as mudanças repentinas, como aquelas introduzidas pelo modelo ocidental e atual de escolarização, têm colocado em risco e provocado a extinção de culturas ricas e adaptadas, em um processo que é fruto de nossa “miopia cultural”. Para Wade, pensar que apenas a forma tradicional de criar e educar as crianças por meio da escolarização é a única legítima é uma arrogância e um dos piores mitos alimentados pela sociedade ocidental.
Também são interessantes as ponderações feitas da linguista Helena Norberg-Hodge, ex-professora do Smithsonian Institution e atual diretora do ISEC, instituição que se dedica a estudar as causas das crises sociais e ambientais e a promover ações sustentáveis e equitativas no modo de viver de populações em risco. Praticamente um mesmo currículo é empregado na escola em todo o mundo, com a finalidade de “treinar pessoas para empregos escassos em uma cultura urbana e de consumo”, e a escolarização ocidental é a principal responsável por introduzir a “monocultura humana” ao redor do planeta, denuncia. Segundo ela, por meio desse modelo de escolarização, estamos “colocando em risco a diversidade de culturas e a diversidade de indivíduos únicos”.
Assista ao documentário na íntegra:
Em concordância com essa visão e em defesa de uma revisão de nossa forma de educar as crianças, Wade Davis argumenta que diferentes formas de saber, de ser e de aprender criam diferentes seres humanos e definem formas diversas de se relacionar com o ambiente. Já por meio da escolarização nos moldes ocidentais e tradicionais, impõe-se a ideia de que os “outros povos não educam”, de que suas culturas “são tentativas falhas de ser igual a nós” ou ainda “tentativas falhas de modernidade”.
O que se busca é um contra-argumento à proposição de escolarização universal, um alerta para a necessidade de maior consciência sobre o porquê, para que e como educamos e um apelo ao respeito pela diversidade
Ao contrário disso – defende Davis – esses modos de educar e viver são “facetas únicas da imaginação humana” e deveriam ser encarados como peças chave do repertório de “soluções criativas” que os humanos desenvolveram ao longo da história humana para se relacionar harmônica e adaptativamente com o mundo.
Talvez ao ler esse relato você imagine que o documentário em questão possa ser piegas e apelativo ou até romantizar as culturas tradicionais e demonizar a educação ocidental. Mas não se trata disso: não há no documentário esse tipo de generalização ou a ideia simplista de que as culturas tradicionais são perfeitas e a escola, de forma geral, uma ameaça. O que se busca é um contra-argumento à proposição de escolarização universal, um alerta para a necessidade de maior consciência sobre o porquê, para que e como educamos e um apelo ao respeito pela diversidade.
Assista ao filme e tire suas próprias conclusões. Além disso, aproveite para visitar apágina oficial do documentário na internet. Há, nela, recursos interessantes de aprendizagem que podem ser úteis, como sugestões de mais vídeos, filmes, livros e artigos, além de um guia de discussão para o próprio filme, como ideias para debates, projetos e atividades em grupo e individuais que podem ser adaptados para o ensino médio ou universitário.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP
Ciência Hoje/ SP